A violência obstétrica constitui-se em prática silenciosa, porém cada vez mais comum, de violência contra a mulher no Brasil. Condutas médicas não autorizadas ou até mesmo desnecessárias, toques indesejados, palavras constrangedoras e abusos sexuais são formas de perpetuação desse tipo de violência.
Um levantamento feito pela Pesquisa “mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado”, realizado pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o Serviço Social do Comércio (Sesc), indica que uma a cada quatro mulheres já foi vítima de violência obstétrica. Sequelas físicas e psicológicas são geradas a partir de procedimentos invasivos, sem consentimento, recusa ou demora de atendimento, negativa de informações e de acompanhantes, dentre outras práticas.
A mulher deve ser a protagonista em sua vida e sua história, decidindo sobre seu corpo, tendo autonomia para dar à luz. Para tanto, deve ter assistência à saúde adequada, com apoio de profissionais capacitados, que respeitem a gestação, o parto e a amamentação como processos naturais.
O Brasil ocupa a segunda posição no ranking mundial de cesáreas e deve reduzir substancialmente essa taxa para se adequar às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), as quais estabelecem um percentual razoável de até 15% de nascimentos operatórios. Muitas mulheres continuam sendo submetidas a cirurgias de grande porte desnecessárias e sem esclarecimento adequado dos riscos e complicações dos procedimentos.
Em 2010, o Ministério Público Federal propôs uma ação civil pública contra a Agência Nacional de Saúde Suplementar, requerendo a regulamentação dos serviços obstétricos realizados por consultórios médicos e hospitais privados no país em razão de a taxa de cesáreas ter chegado a 90%. Seguindo o pedido do MPF, o juiz federal Victorio Giuzio Neto determinou que a remuneração do parto normal seja, no mínimo, três vezes superior ao da cesárea, como forma de estimular a rede privada de saúde.
Significativo também tem sido o esforço do Ministério Público Federal do Amazonas em parceria com o Ministério Público estadual, os quais, desde a primeira audiência pública sobre violência obstétrica, em 2015, vêm apresentando e ações, além da realização de campanhas, novas audiências e atos públicos de enfrentamento a esse tipo de violência.
Outras boas práticas do Ministério Público em defesa das vitimas de violência obstétrica serão apresentadas a seguir, após abordagem sobre as formas mais recorrentes de violência obstétrica atualmente, bem como maneiras de se responsabilizar o médico e o hospital – civil, penal e administrativamente.
Desde meados do século 18, o parto, antes realizado no ambiente doméstico com o auxilio de parteiras, começou a ser hospitalizado. Aos poucos, a figura da mulher foi passado de ativa para passiva, pois separavam-se a mãe e filho após o nascimento da criança, e a maternidade foi ganhando ares de incapacidade civil. Era necessário que alguém cuidasse da mulher, que não mais poderia ter seu parto em casa.
O que se vê no Brasil, hoje, é uma hospitalização do parto na casa dos 97,85%, segundo dados do Ministério de Saúde (DATASUS, 2010). A mãe deixou de ser mulher para ser paciente, médicos agora trabalham com prazos e tecnologias para salvar vidas, operando em escala de produção industrial, com intervenções inapropriadas para que leitos sejam desocupados.
Embora condutas violentas contra mãe e o bebê sejam tomadas predominantemente no momento do ato de parir, é necessário expor que elas podem ocorrer desde o momento gestacional até o período pós-parto. Ocorre a violência obstétrica toda vez que profissionais de saúde se apropriam do corpo da mulher por meio de atitudes violentas, induções medicamentosas e patologização de processos naturais, ações que acarretam a perda de autonomia da parturiente.
Exemplo de violência obstétrica que ocorre no pré-natal é a peregrinação da mulher por leito, causada pela negativa deste, sob as mais variadas justificativas. Nesse ponto, diga-se que cartazes indicativos e inexistência de vagas, por exemplo, não eximem os profissionais de saúde ou os hospitais de transferirem a parturiente para um local no qual saibam existirem leitos (RDC 36 de 2008 da ANVISA). É direito da paciente ser transferida em transporte adequado a estabelecimento de saúde que possa atendê-la sem descaso, abandono ou humilhação.
A violência psicológica é talvez a mais recorrente nesses momentos que antecedem a maternidade. Preconceito, discriminação, estigmatização e culpabilização são formas de violência extremamente traumáticas. O racismo e o preconceito socioeconômico de profissionais de saúde também dificultam, senão impedem, o tratamento adequado à mãe e ao bebê.
Igualmente traumatizante é a proibição de acompanhante para a parturiente ou sua restrição mediante taxas, atitudes que violam diretamente a Lei 11.108/05, a RDC 38/08 da Anvisa e, por vezes, o Estatuto da Criança e do Adolescente (mães adolescentes). Embora diversos estudos tenham comprovado os benefícios da presença de um acompanhante no parto, e apesar da garantia legal no Brasil, diversos hospitais e profissionais ainda a proíbem ou a obstruem sob justificativas como “no SUS não existe esse privilégio” ou “na rede particular é necessário o pagamento de uma taxa”.
Avançando para a fase final do nascimento, vê-se que nesse momento é provavelmente quando mais se pratica a violência contra a mulher. Ocorre desde a demora no atendimento, da negativa de acompanhante na sala de parto, até as práticas médicas como a manobra de Kristeller, já rechaçada pela Organização Mundial da Saúde em virtude dos altos riscos que oferece: Essa manobra ainda é frequentemente realizada na assistência ao parto em conjunto com outras intervenções inadequadas realizadas em cadeia, como condução para mesa de parto antes da dilatação completa, imposição de posição ginecológica (que prejudica a dinâmica do parto e prejudica a oxigenação do bebê), comandos de puxo, mudança de ambiente, entre outros. Salienta-se que os próprios profissionais de saúde reconhecem que a manobra de Kristeller é proscrita, porém, continuam a realiza-la, apesar de jamais a registrarem em prontuário.
As recomendações da Anvisa não impõem óbice, por exemplo, ao fato de a mulher escolher uma posição verticalizada, aproveitando-se da gravidade e facilitando o procedimento para si mesma e para o bebê:
9.6 Na assistência ao trabalho de parto, o serviço deve:
9.6.1 garantir a privacidade da parturiente e seu acompanhante;
9.6.2 proporcionar condições que permitam a deambulação e movimentação ativa da mulher, desde que não existam impedimentos clínicos;
[…]
9.6.6 garantir à mulher condições de escolha de diversas posições no trabalho de parto, desde que não existam impedimentos clínicos;
9.6.7 estimular que os procedimentos adotados sejam baseados na avaliação individualizada e nos protocolos institucionais.
Embora tal normativa exista há mais de dez anos, equipes médicas muitas vezes não a seguem, alegando haver rotina atribulada nos hospitais. Ocorre que a própria Organização Mundial de Saúde já recomendou, e o Sistema Único de Saúde ratificou, a eliminação de condutas médicas prejudiciais ou ineficazes, tais como:
– Uso rotineiro de enema (lavagem intestinal).
– Uso rotineiro de raspagem dos pelos púbicos.
– Infusão intravenosa rotineira em trabalho de parto. […]
– Uso rotineiro da posição supina (deitada) durante o trabalho de parto.
– Exame retal. […]
– Administração de acitócicos (ocitocina ou derivados) a qualquer hora antes do parto de tal modo que o efeito delas não possa ser controlado.
– Uso rotineiro da posição de litotomia (posição ginecologia, deitada com as pernas elevadas por apoios) com ou sem estribos durante o trabalho de parto e parto.
– Esforços de puxo prolongados e dirigidos (manobra de Valsalva) durante o período expulsivo.
– Massagens ou distensão do períneo durante o parto.
– Uso de tabletes orais de ergometrina (medicamento que provoca a contração do útero) na dequitação para prevenir ou controlar hemorragias.
– Uso rotineiro de ergometrina parenteral na dequitação (expulsão da placenta).
Para os fins da Lei 11.108/05 (Lei do Acompanhante), o período de pós-parto
imediato é considerado, pela Portaria do Ministério da Saúde 2.418/05, como os dez primeiros dias depois do parto, espaço de tempo no qual a mãe tem, ainda, o direito a acompanhante (frise-se: ao acompanhante que a mulher escolher, sem cobrança de qualquer valor pecuniário).
Após o parto, outra espécie de violência obstétrica muito comum é o “ponto do marido”, o qual é realizado após a sutura da episiotomia, muitas vezes sem autorização da mulher, “onde se aperta a entrada da vagina, com o intuito de torna-la mais estreita, teoricamente aumentando a satisfação sexual do marido”. Tanto a episiotomia quanto o ponto do marido são, frequentemente, desnecessários, demonstrando o enraizamento de uma cultura machista e patriarcal.
Por derradeiro, não se pode deixar de mencionar a violência em casos de abortamento legal. Não é incomum encontrar profissionais da saúde que alegam objeção de consciência nesses casos, situação em que o médico deve prontamente encaminhar a paciente a outro profissional, segundo a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento do Ministério da Saúde.
A mesma normativa prevê a atenção humanizada da equipe médica perante a paciente, visto que o acolhimento, a prestação do serviço de saúde sem julgamento, preconceito ou discriminação, bem como o suporte emocional melhoram a relação paciente-médico, já que “aumenta a capacidade de resposta do serviço e o grau de satisfação das mulheres com o serviço prestado, assim como influencia na decisão pela busca de um futuro atendimento”.
A responsabilidade médico-hospitalar pode se desdobrar em três campos: civil, penal e administrativo. Sabe-se que, segundo o art. 186 do Código Civil (Lei 10.406/02), os profissionais liberais (médicos) respondem subjetivamente pelos danos, isto é, com a demonstração da culpa, “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Os fornecedores dos serviços de saúde (hospitais, clinicas, planos de saúde) respondem objetivamente pelos danos causados por seus prepostos (culpa in eligendo e culpa in vigilando), após demonstração de culpa do médico contratado, com base no art. 933 do Código Civil, segundo o qual “as pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos”, além do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor.
Com efeito, esse também é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça. Na análise do REsp 1.621.375 aquela Corte decidiu que a responsabilidade do médico deve vir acompanhada da prova de culpa (negligência, imperícia ou imprudência), enquanto o hospital pode ser responsabilizado objetivamente.
Por oportuno, salienta-se que a responsabilidade objetiva dos hospitais não é absoluta, afinal, tem-se que o estabelecimento hospitalar responde objetivamente pelos danos causados aos pacientes toda vez que o fato gerador for o defeito do seu serviço, isto é, quando o evento danoso proceder de defeito do serviço, sendo, ainda assim, indiscutível a imprescindibilidade do nexo causal entre a conduta e o resultado.
Tem-se, deste modo, que a responsabilidade objetiva para o prestador de serviço, prevista no art. 14 do CDC, na hipótese de tratar-se de hospital, limita-se aos serviços relacionados ao estabelecimento empresarial, tais como estadia do paciente (internação e alimentação), instalações, equipamentos e serviços auxiliares (enfermagem, exames, radiologia) (REsp 1.526.467/Rj, 3° Turma, DJe 23.10.2015).
Em contrapartida, a responsabilidade dos hospitais, no que tange à atuação dos médicos contratados que neles laboram, é subjetiva, dependendo da demonstração de culpa do preposto, não se podendo, portanto, excluir a culpa do médico e responsabilizar objetivamente o hospital.
Abordando-se a responsabilização concretamente, pode-se citar a responsabilização no âmbito cível da falta de consentimento de um parto cesariano.
Sabe-se que os exames de pré-natal são imprescindíveis para o acompanhamento da saúde da mãe e do bebê. É nessa fase que o obstetra detecta possíveis enfermidades e anormalidades na gestação e prevê a futura necessidade de um parto cirúrgico. Seria esse o momento propício para explicar à mulher a possibilidade de um parto cesáreo e fornecer todas as informações de um termo de consentimento para a cirurgia.
O que ocorre muitas vezes é a elaboração do termo de consentimento, às pressas, no momento do parto natural, quando a mulher está vulnerável, tomada de emoções e até inconsciente. Isso constitui uma violação do direito de autonomia da mulher sobre seu próprio corpo. Entende-se que a mera adesão ao termo de consentimento genérico sem prévias explanações não possui validade jurídica, devendo o médico responder pela violação ao principio da autonomia do paciente.
No âmbito penal, a responsabilização do médico pode se dar por causa de várias razões, tais como a realização de episiotomia (“ponto do marido”) sem consentimento, causa que leva ao indiciamento do profissional por lesão corporal; o abandono da paciente e bebê pela equipe médica, que gera responsabilização por omissão de socorro tanto por parte do médico quanto do hospital; e mesmo ações penais de crimes contra a honra, em virtude de violência psicológica perpetrada. Não é raro encontrar relatos de mulheres que ouvem as mais traumatizantes frases na hora do parto, as quais podem ser várias, entre elas:
Além dos fatos geradores já citados, pode-se incluir até o homicídio, na forma de dolo eventual ou culposo, como no caso do médico J.D, de Mato Grosso, que teria agido com violência durante o parto e se utilizou da manobra de Kristeller para acelerar o processo, prática não recomendada pelo Conselho Regional de Medicina. Uma semana depois do parto, o bebê faleceu na unidade de terapia intensiva.
Caso o médico em apreço fosse servidor de um hospital público, a violência em tese praticada seria enquadrada também na conduta de violência arbitrária prevista no Código Penal (Art. 322 – Praticar violência, no exercício de função ou a pretexto de exercê-la: Pena – detenção, de seis meses a três anos, além da pena correspondente à violência), uma vez que o profissional teria excedido o uso de sua força, sob o pretexto de exercer sua função.
No que tange mais especificamente ao hospital, nas hipóteses em que este for de natureza pública, infere-se do artigo 143 da Lei 8.112/90 ser obrigação da autoridade que tiver ciência dos atos de violência obstétrica promover a apuração imediata da irregularidade. Em caso de negativa de apuração, a autoridade poderá incorrer na prática de improbidade administrativa, segundo artigo 11 da Lei 8.429/92 (II – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício).
Necessário se faz, no entanto, difundir essas informações, seja em campanhas publicitárias, em políticas públicas ou através de recomendações do Ministério Público. Sem os devidos dados e a consciência de que atos de violência contra a parturiente são temerários, não haverá mudança de conduta.
Dispõe a Constituição Federal que cabe ao Ministério Público brasileiro como função essencial à justiça: a defesa dos direitos sociais e individuais indisponíveis, a defesa da ordem jurídica e a defesa do regime democrático.
Para além disso, o Código de Processo Civil determina que o parquet intervenha como fiscal da lei em processos que envolvam interesse público ou social, interesse de incapaz ou litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana.
Entende-se que, dentro dos direitos sociais e individuais indisponíveis, bem como dos interesses públicos e sociais, estejam abrangidos os direitos das mulheres, mormente em virtude de o Brasil ser signatário da Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, de 1994), a qual dispõe:
Artigo 1. Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.
Artigo 2. Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica. […]
Além disso, é atribuição do MP atuar na instauração de procedimentos mesmo quando o interesse seja individual, nos casos em que os efeitos possam ser coletivos, conforme a Súmula 601 do Superior Tribunal de Justiça: o Ministério Público tem legitimidade ativa para atuar na defesa de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos dos consumidores, ainda que decorrentes da prestação de serviço público.
A relação paciente-médico é, ao contrário do que muitos alegam, uma relação de consumo em que se prestam serviços de saúde por um fornecedor (hospital, clínica) a um consumidor (paciente), na maioria das vezes por um profissional liberal (médico).
Essa linha de raciocínio permite a aplicação da Súmula 601 do STJ, legitimando o Ministério Público a atuar em defesa de uma única vítima de violência obstétrica, haja vista sua natureza de direito individual homogêneo.
Com efeito, não poderia o MP negligenciar tais abusos e atos de violência perpetrados tanto em hospitais públicos quanto privados, mormente quando a omissão do Estado brasileiro já foi reconhecida pelo Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, na ocasião do Caso Alyne Pimentel (Organização das Nações Unidas 2011).
Apesar de a defesa individual das vítimas ser realizada pela Defensoria Pública,
O enfrentamento à violência obstétrica que se pretende efetivo demanda a compreensão do fenômeno também sob o viés coletivo, de modo que denúncias individuais sejam compreendidas como representações de um sistema de atendimento à mulher falho. Nesse ponto, necessária e oportuna a atuação do Ministério Público Federal no cumprimento de seu dever constitucional de defender interesses difusos e coletivos.
No estado do Amazonas, o Ministério Público Federal formou, em 2014, uma rede voltada à prevenção e ao enfrentamento da violência obstétrica estadual, reunindo organizações governamentais e não governamentais. Tudo começou quando o órgão recebeu uma representação de uma vítima de violência obstétrica, da cidade de Manaus e, a partir dela, instaurou um procedimento extrajudicial para investigar mais a fundo os fatos relatados, antes mesmo de declarar ausência de atribuição.
O parquet federal, então, resolveu questionar órgãos de saúde do estado e prestadoras de serviço de saúde privadas para se manifestarem acerca do cumprimento da Lei do Acompanhante em suas maternidades e eventuais denúncias de violência obstétrica, ao que as respostas registravam uma aparente normalidade no atendimento à mulher.
Ainda assim, promoveu-se uma audiência pública sobre o tema que terminou por reunir mais de 140 pessoas, entre elas muitas vítimas de violência obstétrica que narraram seus casos. A reação dos fornecedores do serviço de saúde foi no sentido de que os relatos eram apenas relatos, e que não era possível se vislumbrar sequelas da suposta violência sofrida.
Foi então que o MPF do Amazonas expediu recomendações a hospitais públicos e privados, universidades e clínicas, para que promovessem a conscientização da Lei do Acompanhante e das sanções cabíveis em casos de violência a parturientes e mães; bem como criou um termo de cooperação ao qual aderiram o parquet estadual, a Defensoria Pública Federal, a Defensoria Pública Estadual, as secretarias Estadual e Municipal de Saúde, a Secretaria de Justiça e Cidadania do Amazonas, a Secretaria de Segurança Pública, a Universidade Federal do Amazonas, a Universidade do Estado do Amazonas, o Conselho Regional de Enfermagem e a Ordem dos Advogados no Brasil, no sentido de unirem esforços para combater a violência obstétrica no Amazonas.
Desde a primeira audiência pública no estado, outras foram realizadas, bem como foi criado um comitê para o enfrentamento à violência obstétrica, que promove rodas de conversas, palestras e interação sobre o problema. Disciplinas de humanização também foram acrescentadas nos programas de universidades federais e pessoas foram aperfeiçoadas para lidar com essa questão na Defensoria Pública e no Ministério Público Federal.
No estado de Santa Catarina, promulgou-se uma lei, em 2017, para dispor sobre a implantação de medidas de informação e proteção à gestante e parturiente contra a violência obstétrica. O Ministério Público do estado também divulga informações detalhadas em seu site orientando as vítimas a identificar os danos sofridos e a buscar amparo jurisdicional.
Por sua vez, o Ministério Público do Estado do Acre lançou uma cartilha sobre os direitos das mulheres no parto e uniu esforços junto ao Centro de Atendimento à Vitima (CAV) e Núcleo de Apoio e Atendimento Psicossocial (Natera). O MPAC disponibiliza em seu site as informações contidas na cartilha, com vários exemplos de violência obstétrica, legislação específica, vídeos, além de canais para denúncias.
O Ministério Público Federal na Bahia também já atuou contra a violência obstétrica, recomendando que o superintendente da Maternidade Climério de Oliveira adotasse as providências necessárias a fim de evitar e coibir práticas de violência obstétrica, garantindo atendimento humanizado às gestantes e parturientes, em conformidade com a legislação; afixasse cartazes elaborados pelo MPF a título de campanha educativa e de esclarecimento da população sobre violência obstétrica e direitos das gestantes; e instaurasse imediatamente os competentes processos administrativos sempre que tomasse conhecimento de práticas de violência obstétrica no âmbito da maternidade a fim de apurar os fatos denunciados.
Significativa também foi a atitude do Ministério público Federal em São Paulo, que, através da procuradora da república Ana Carolina Previtalli, responsável por um inquérito civil público com quase duas mil páginas e quarenta anexos com relatos de denúncia de violência obstétrica em maternidades e hospitais de todo o país, em maio deste de 2019 requereu que o Ministério de Saúde se abstivesse de realizar ações voltadas a abolir o uso da expressão “violência obstétrica” e que, em vez disso, tomasse medidas para coibir tais práticas agressivas e maus-tratos.
Portanto, vê-se que há variadas formas de o Ministério Público intervir em defesa da mulher parturiente – seja por meio de instauração de procedimentos, expedição de recomendações a hospitais e clínicas, seja pela promoção de rodas de conversas e palestras com especialistas, audiências públicas, termos de compromisso, e demais maneiras que entender cabíveis para erradicar a prática de violência obstétrica.
Na legislação brasileira não há norma que disponha especificamente sobre a violência obstétrica. Acredita-se, com este trabalho, que tal regulamentação não seja necessária, uma vez que já existem dispositivos legais aplicáveis aos tipos de violência sofridos.
Vê-se na experiência nacional que a promulgação de leis usualmente traveste-se de segurança jurídica, o que se sabe não ser sempre verdade. Existe certo risco ao se tipificar atos de violência obstétrica, visto que a subsunção dos fatos às normas – como é hoje – pode ser mais abrangente do que se existissem dispositivos específicos para detalhar cada ato de violência. É preciso muito cuidado ao se criar tipos legais, para que sua redação não seja tão minuciosa a ponto de não se conseguir impô-la a alguém.
O passo fundamental, defende-se, seria uma mudança na cultura dos profissionais de saúde, no enfrentamento do tabu da ideologia de gênero e na aceitação de que o parto é da mulher. Em vista de tantas normativas, locais, nacionais e internacionais, é um despautério haver ainda a necessidade de se exigir tratamento humanizado no parto, pré-parto, pós-parto ou abortamento legal.
O fato de haver diversas mulheres que reclamam por mais cuidado, que relatam sofrimento no puerpério, unido ao fato de muitas pessoas e profissionais de saúde menosprezarem o problema é, em si, um problema. A sociedade já banalizou práticas de violência obstétrica, aceitou um parto sofrido e torturante como normal, e encara um parto humanizado como sorte.
Não é difícil se realizar tratamento humanizado, tampouco depende de lastro financeiro do hospital ou do Estado – depende, sim, do tato, da empatia, do colocar-se no lugar da mãe e tratá-la como a mulher que é, sem julgamentos, preconceitos ou discriminações; sem questionar o porquê de aquela mulher estar parindo, se ela escolheu ou não, se possui o apoio do pai ou não. O suporte emocional não depende de lei orçamentária.
Boas práticas como as do Ministério Público Federal do Amazonas, do Ministério Público do Estado de Santa Catarina, dentre outros, demonstram que falta conscientização e quebra de paradigmas, desapego à cultura misógina e rompimento com o modelo atual.
Mais importante do que legislar, no presente caso, é promover debates, discutir a situação da mulher, criar políticas públicas para a humanização do parto, alterar a grade curricular dos cursos de medicina para se incluir o tratamento humanizado ao paciente, bem como difundir a ideia de que a vida e os sentimentos da mãe são tão importantes quanto os do bebê. Sem a percepção de que a mãe é um sujeito de direitos, e não um objeto da medicina, e que a mulher protagoniza o parto, não se alcançará a erradicação da violência obstétrica no Brasil.
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