Fetiche Punitivista: Bandido bom é bandido morto?
Dizem que você sabe o quão rígido é um país de acordo com as normas penais estabelecidas por ele. No Brasil, ao contrário do que pensa o senso comum, que, pelo acaloramento midiático sobre o tema, imagina a impunidade, as normas são duras, sobretudo se o sujeito é pobre e negro.
A Lava-Jato é uma das grandes responsáveis em tornar as questões penais – especialmente quanto à prisão – recorrentes em conversa de boteco, e, como extensão, as eleições fizeram com que essa vulgarização em torno da penalidade do sujeito passasse ainda mais a ser discutida no café da manhã das famílias brasileiras.
Em certa medida, esse é um avanço, já que pouco tempo atrás havia um jargão popular que dizia que “política, religião e time de futebol não se discute”. Entretanto, no meio jurídico, setor responsável para organizar a política, há uma preocupação de como essa disseminação ocorre, visto que, muitas vezes, aparece de maneira irresponsável e carregada de fantasias.
É certo que a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini não fizeram nascer o nazismo e o fascismo da noite para o dia. Os discursos de ódio, centralizados e higienistas, são fenômenos que se instalam pouco a pouco, e vão ganhando dimensões populares de acordo com as carências daquele Estado.
No nosso caso, a narrativa cola porque é fluida e objetiva: se tem quem rouba dinheiro público e é corrupto, tem quem passe fome tendo que se virar com as mazelas do desemprego, da precarização da saúde e com o baixo nível de educação.
Diante desses acúmulos de insatisfações e com uma onda de promessas “abracadabra”, que assegura acabar magicamente com os problemas da economia, e adotando uma política neoliberal, o Brasil pariu Bolsonaro, onde o discurso central se apoia no slogan “bandido bom é bandido morto”.
É preciso, todavia, descortinar o discurso, uma vez que os crimes de colarinho branco que envolvem a famigerada corrupção são cometidos por uma parcela da sociedade imbuída de poder econômico. Entretanto, no Brasil, criminoso mesmo é aquele que enfia a mão no seu carro durante o semáforo fechado e leva seu celular.
É o plano perfeito para o narciso, já que, entre a vaidade do líder e sua exaltação pelos oprimidos que o elegem como figura salvadora, somem dos cafezinhos das famílias brasileiras assuntos relacionados às garantias e à defesa dos direitos, chegando ao ponto em que direitos humanos vira quase palavrão.
Isso é interessante, porque há alguns direitos que não é necessário que se tenha sentado em um banco universitário para saber que eles existem. Provavelmente você já ouviu que “todos são iguais perante a lei” e, certamente, já ouviu também sobre “in dubio pro reo” ou “presunção da inocência”, expressões que muito antes do alvoroço provocado pela Lava-Jato encontravam-se estampadas nos jornais.
A história que geralmente não se conta é que esses direitos são fruto da luta travada no período da ditadura militar brasileira, quando pessoas sumiam na calada da noite e nunca mais apareciam. Se apareciam, estavam mortos, comumente marcados pelo sofrimento e pela tortura provocada pelo Estado.
Com a discussão sobre a prisão em segunda instância, o STF viu-se obrigado a reiterar aquilo que já está na Constituição Federal e que, para muitos, soou como surpresa: “não se pode ser preso até que se tenha decisão transitada em julgado”, ou seja, até que se tem julgado absolutamente todos os recursos.
Atualmente, com a inversão da narrativa de tempos supostamente gloriosos quando se referem à ditadura, a provocação seria: “Você conhece alguém que já foi preso? Quais são os corpos violentados e torturados nas cadeias brasileiras? De que cor ou raça eles são? Você teve oportunidade de conversar sobre as atrocidades vivenciadas dentro do sistema? Você acredita que essa pessoa voltou melhor ou pior para sociedade quando foi solta? E se essa pessoa fosse seu filho, esposa ou marido? E se fosse você mesmo?
Esse fetiche pelo punitivismo sadomasoquista, naturalizado pela lógica perversa de que “bandido bom é bandido morto”, nasce daqueles que têm a certeza de que são intocáveis pelo Estado brasileiro e que nunca serão presos. Aqueles que ignoram que o estado de exceção se encontra bem ali, virando a esquina. Aos que não se sentem ameaçados pelo calor da vaidade de quem gere a máquina pública em poder decidir quem vai preso e quem vai solto, passando por cima, inclusive, da Constituição e dos direitos e garantias que ela assegura.
Autora: Monique Rodrigues do Prado – Advogada
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