Direito do Autor – Não há justificativa para baixar obras intelectuais na internet por meios ilícitos. Quem pratica esse ato comete o crime de pirataria. Com lucro ou sem lucro
O art. 7° da Lei de Direitos Autorais (LDA) – Lei 9.610/98 – é claro e abrangente. As obras intelectuais, entendidas como criações do espírito, são protegidas pela lei, independente do suporte. Se tangível ou intangível, se conhecido ou ainda a ser inventado.
Isso não deveria dar margem para dúvida. O mesmo artigo lista algumas das obras intelectuais, mas o rol não é taxativo, ou seja, não se exaure no que a lei exemplifica. Estão protegidas as composições musicais, os livros artísticos ou científicos, as pinturas, as fotografias, os filmes, as obras dramáticas, coreográficas, pantomímicas, as esculturas, os projetos de arquitetura, as adaptações e traduções. Além desses mencionados, as conferências, os sermões e as alocuções em sua definição mais genérica, ou seja, qualquer ato de fala pelo qual uma pessoa se dirige a outra.
Obras intelectuais devem ser exteriorizadas, finalizadas, fixadas em uma plataforma e conter o mínimo de criatividade e originalidade, desde que elas sejam executadas por um ser humano.
Em 1957, Congo pintou cerca de 400 quadros abstratos que rapidamente ganharam notoriedade. Ele era comparado a Cézanne e teve suas obras expostas em galerias, as quais foram bem recebidas pela crítica e, depois, vendidas em leilões. Detalhe: Congo era um chimpanzé. Ele havia sido estimulado a pintar por Desmond Morris, o zoólogo britânico autor de “O Macaco Nu”. Morris o exibia em seu programa de televisão e era defensor da tese segundo a qual os primatas poderiam entender alguns dos elementos da arte humana.
A lei dos direitos autorais, entretanto, não se aplica aos primatas, ainda que, admitamos, o estilo de pintar de Congo possa ser comparado ao expressionismo abstrato de Jackson Pollock (1912-1956). Mas o chimpanzé não teria qualquer direito assegurado, mesmo se o caso fosse levado aos tribunais.
Se contextualizado, o direito do autor (ou autoral) só faz sentido ao se relacionar com a personalidade do criador da abra artística. Há uma ligação estreita entre o produto tal como foi concebido e quem o produziu. São aspectos inalienáveis que dizem respeito à assinatura, ao DNA do autor, e não podem ser transferidos, por exemplo, para uma pessoa jurídica. Uma empresa pode ser titular de direito de uma obra, mas só por meio de uma ficção jurídica denominada cessão de direitos autorais.
Historicamente, não se viu na Antiguidade ou na Idade Média um sistema de direitos autorais tal como o conhecido na contemporaneidade. Pedro Paranaguá e Sérgio Branco, professores na Escola de Direito da FGV-Rio, relatam no livro Direitos Autorais, publicado em 2009, que “nas civilizações grega e romana inexistiam os direitos de autor para proteger as diversas manifestações de uma obra, como sua reprodução, publicação, representação e execução. Concebia-se, na época, que o criador intelectual não devia ‘descer à condição de comerciante dos produtos de sua inteligência”’.
Certamente, a invenção da tipografia e da imprensa, no século 15, com a possibilidade de as obras literárias serem distribuídas – e também as partituras musicais – de forma mais ampla faz que os autores reavaliassem o desprezo aos ganhos pecuniários que poderiam auferir caso suas criações caíssem no gosto popular.
Claro que essa preocupação foi posterior à dos livreiros. Foram eles que investiram somas expressivas na prensagem dos livros e correram o risco de que terceiros, sem qualquer despesa adicional, reproduzissem e imprimissem as obras de maior sucesso sem arcar com os custos da edição original. Disso se conclui que a chamada “pirataria” não é uma prática exclusiva dos nossos dias.
Os conflitos crescentes entre livreiros autorizados e não autorizados, somados à insatisfação dos autores, levaram à publicação na Inglaterra, em 1710, do notório Estatuto da Rainha Ana, que concedeu aos editores o direito de cópia por período determinado, e possibilitou aos autores terem maior controle sobre suas criações.
No Brasil, até a edição da Lei 496, de 1898, ou seja, um século antes da promulgação da Lei de Direitos Autorais, as obras intelectuais eram copiadas e impressas sem a preocupação por parte do editor em prestar qualquer satisfação ao autor. Quando o fazia, tripudiava. Paranaguá e Branco descrevem a revolta do escritor português Pinheiro Chagas com um certo editor do Rio de Janeiro a quem chamava de “ladrão habitual”. Esse editor brasileiro costumava enviar cartas elogiando as obras do autor lusitano e comunicando, com satisfação, que as imprimia todas sem qualquer pudor ou prestação de contas. “Tudo que Vossa Excelência publica é admirável! Faço o que posso para o tornar conhecido no Brasil, reimprimindo tudo!”
Era comum, na época, para gáudio dos editores e infortúnio dos autores das obras, que livros estrangeiros principalmente, mas também os nacionais, fossem copiados indiscriminadamente sem qualquer pedido de licença ao autor. Nem mesmo a entrada em vigor do Código Civil de 1916, que classificou o direito de autor como bem móvel e validou o prazo prescricional da ação civil por ofensa a direitos autorais em cinco anos, arrefeceu os ânimos daqueles que se dispunham a copiar e imprimir livros sem dar qualquer satisfação àquele que trouxera “a obra a lume”, como alegavam os causídicos nas primeiras décadas do século 20.
Com tal descaso ao autor, seja ele nacional ou estrangeiro, é surpreendente sublinhar que o sistema de estrutura dos direitos autorais no Brasil filia-se ao conceito francês, que privilegia a criatividade da obra, sua originalidade e questões morais que envolvem diretamente a manifestação artística. Há apego jurídico, por exemplo, à paternidade intelectual, ao direito de integridade ( o texto não pode ser alterado) e ao de retirada ou arrependimento, que consiste na prerrogativa do autor de desautorizar a circulação da obra se considerá-la prejudicial à sua reputação ou imagem.
O outro sistema é o “copyright”, adotado principalmente nos países de língua inglesa, e que foi construído com base na possibilidade de reprodução de cópias. É esse, aliás, o principal direito a ser protegido. Baseia-se em uma vertente patrimonialista do direito do autor, enquanto o sistema francês é calcado na personalidade, no direito moral, na criação de obra desde que executada e finalizada.
Para fins legais, no entanto, o direito do autor no Brasil conjuga as duas vertentes, a patrimonial e a pessoal. As vantagens de um ou outro sistema – ou de ambos, como ocorre em território nacional – seriam dignas de debate, não fosse este obstáculo que parece intransponível: a migração de obras artísticas para o suporte intangível. Esse é o caso das publicações em suporte digital, as quais têm facilitado sobremaneira a difusão da pirataria no país. A reprodução não autorizada chega a tal ponto que se questiona se existe um horizonte de legalidade nesse oceano de bucaneiros. Quando o assunto é regular as relações jurídicas derivadas da criação e utilização de obras de natureza estética, a resposta tende a ser negativa.
Os que defendem a pirataria, ou, no dizer acadêmico, a conduta da sociedade contemporânea em desafiar os preceitos estruturais do direito do autor, argumentam que os direitos autorais não podem ser impeditivos do desenvolvimento cultural e social. Ora, então estamos conversados. Neil Gaiman, o roteirista de quadrinhos, autor de “Sandman”, esteve na FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty), em 2008, e, certamente com o propósito de agradar aos fãs, disse não se importar com o fato de algumas de suas HQS estarem sendo baixadas ilegalmente na internet. Para um autor de prestígio, o prejuízo pode ser de pequena monta. Mas esse raciocínio não combina com o espírito da internet. No mundo “ideal” da web, um autor desconhecido poderia ter a grande chance de sair do anonimato e da consequente indigência financeira (maioria dos casos) se o usuário pagasse o preço para ler a sua obra.
Há algo de hipócrita no argumento de que baixar um vídeo pirata é inspirador e inculpável. A defesa de transpor a literalidade da lei para alcançar o que é intangível, no caso um filme, um livro, uma música, só se justifica pela intangibilidade. Não há aí qualquer truísmo. É uma constatação fática. Fosse um livro impresso, furtado em uma loja, e o intransponível cultural seria tratado como crime tipificado no Código Penal.
É esta a questão. A alternativa proposta é procurar, no mundo digital, novos modelos de negócios que possibilitem a remuneração do autor. Mas a alternativa ainda não foi encontrada. O que não se pode fazer é advogar pela transgressão.
O art. 102 da Lei de Direitos Autorais prevê que o titular de obra fraudulentamente reproduzida, divulgada ou utilizada de outra forma pode requerer a apreensão dos exemplares ou a suspensão da divulgação sem prejuízo de indenização cabível. O art. 103 diz que quem editar obra literária, artística ou científica sem anuência do autor perde para este os exemplares apreendidos, devendo ainda pagar o preço dos que tiverem sido vendidos. Caso o número de exemplares não possa ser determinado, o transgressor deverá quitar o valor correspondente a três mil exemplares. O Código Penal, em seu art. 184, lança vários tipos de punição àqueles que violem os direitos de autor. Mesmo no caso de cópia para uso privado, o que, convenhamos, ocorre com frequência, o caput do artigo não deixa dúvida. A pena é de detenção de três meses a um ano ou multa. Tal sanção será severamente mais salgada do que o preço de um exemplar de livro ou de faixa musical ou de um serviço de vídeo por demanda disponível na internet. Se comprado licitamente.
Autor: Marcus Gomes – Jornalista
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