Feminicídio no princípio constitucional da isonomia

  • 08.06.2021
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Feminicídio no princípio constitucional da isonomia

A nova lei de feminicídio em face do princípio constitucional da isonomia. Avanço ou Retrocesso?

 

Resumo

Artigo científico que trata do feminicídio sob o prisma do princípio constitucional da isonomia, onde se buscou entender a nova qualificadora do crime de homicídio e compreender os motivos que levaram o legislador à confeccionar a lei que a incluiu no Código Penal. Compara, em síntese, a situação histórica vivida pela mulher de desigualdade perante o homem com a condição atual vivida, para ao final concluir se houve ou não retrocesso em termos de isonomia entre homem e mulher com o advento da nova lei.

  1. Introdução

No dia 8 de março de 2015 foi comemorado o dia internacional da mulher. Oportunamente, no dia seguinte, segunda-feira, 9 de março, não podendo ser em melhor data, as mulheres brasileiras tiveram outro motivo digno de comemoração: a presidente da República, Dilma Rousseff, procedeu à sansão da Lei 13.104/15, instituindo o feminicídio (crime definido, em síntese, como homicídio de mulher por razões de gênero quando envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condução de mulher). Isto é, a priori, a promulgação da referida lei gera uma situação de maior segurança e proteção às mulheres.

De fato, a comemoração foi grande, mormente pela bancada feminina do Congresso, pelos movimentos feministas e pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher, autora do Projeto de Lei 8.305/2015 (oriundo do PLS 292/2013), que deu origem à norma jurídica em comento.

Contudo, a inclusão do feminicídio no texto legal do Código Penal, apesar de ter sido feita há pouquíssimo tempo, já é tema central de inúmeras discussões e embates, sobretudo quando colocada sob o prisma do princípio constitucional da isonomia, pois há quem defenda que ocorreu uma violação à equidade entre homem e mulher com a edição da referida lei.

Dessarte, a novel criminização do feminicídio (que em verdade é uma qualificadora do delito de homicídio que o eleva ao status de crime hediondo) leva-nos a questionar se houve um avanço ou retrocesso em termos de igualdade entre homem e mulher, ou, ainda, se há ou não violação à isonomia assegurada constitucionalmente aos brasileiros (e estrangeiros residentes no país), questionamento pelo qual se apresenta este artigo científico com o fito de melhor entender a questão e, consequentemente, dirimi-la.

  1. Desenvolvimento e análise do tema
    • Considerações iniciais e breve escorço histórico

Cronologicamente, é certo que a mulher ao longo do passar dos anos transpôs grandes barreiras em termos de igualdade perante os homens. Não há melhor tema para dar respaldo a essa afirmação sobre a progressão feminina rumo à isonomia senão nas relações familiares entre marido e mulher.

Se voltarmos no tempo (para um passado não tão distante), é possível constatar que a mulher  não era considerada pessoa capaz civilmente, sendo relativamente capaz apenas enquanto estivesse casada (equiparando-se aos pródigos, silvícolas e aos menores), cabendo ao marido a chefia da sociedade conjugal e a administração do patrimônio. Ademais, pode-se notar claramente que a mulher não detinha nenhuma liberdade sobre seu corpo (sua sexualidade), pois era possibilitado ao esposo anular o matrimônio em caso de ignorância sua acerca do defloramento da varoa. Tampouco tinha a mulher liberdade no que se refere a labores fora dos domínios residenciais, haja vista que partia do homem a autorização para que a mulher pudesse fazê-lo. Isso ocorreu porque o digesto civilista de 1916 retratava a sociedade patriarcal brasileira da época e outorgava ao varão o poder exclusivo e soberano sobre a família.

É bem verdade que, se olharmos para um passado recente, verifica-se também que a mulher somente passou a ter seu direito ao voto (uma das maiores expressões de cidadania e democracia) há pouco mais de oitenta anos, com a reforma no Código Eleitoral brasileiro, ocorrida em 1932.

Por estes poucos exemplos de submissão expostos, se comparados à situação atual vivenciada pela mulher, resta notável o grande avanço realizado pelo sexo feminino, já que hodiernamente goza de plena isonomia com o sexo masculino. Conforme reza o texto da lex fundamentalis, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, classificando-se homens e mulheres como iguais em direitos e obrigações – é um direito e garantia fundamental.

Tecidas tais considerações, vislumbra-se que a mulher aos poucos foi deixando para trás a sua “inferioridade” e submissão ao homem, tirando as algemas da opressão e da fragilidade que lhe eram postas por uma sociedade patriarcal e machista, caminhando a largos passos rumo à isonomia, ou seja, colocou de lado sua condição de “sexo fraco”, o que foi fatalmente sepultado com o advento da Constituição Federal de 1988, que colocou uma pá de cal sobre as desigualdades e salientou a igualdade entre todos.

2.2 Princípio constitucional da isonomia

Entretanto, é preciso trazer à baila maiores elucubrações sobre o tema para entendermos do que se trata realmente essa igualdade entre homem e mulher de que trata a carta política de 1988.

Topograficamente, o princípio da igualdade assegurado constitucionalmente está localizado no título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, capítulo I, Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, em seu art. 5°, inciso I, que preconiza a igualdade de todos perante a lei.

Cediço que todas as pessoas vêm ao mundo com liberdade e igualdade em direitos, deveres e dignidade, sendo que a garantia de igualdade decorre do princípio constitucional da isonomia, que é pedra fundamental do regime democrático em que vivemos, significando que todos os brasileiros têm direito às mesmas oportunidades, vedando-se privilégios ou privações.

Diz-se, também, nessa mesma senda, segundo conhecido magistério de Aristóteles, que igualdade é tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, uma vez que a norma não deve ser fonte de regalias nem de perseguições, mas sim um meio organizados da coletividade e da vida em sociedade, de modo que trate equitativamente todos os cidadãos. Esta é a ideologia retratada pelo princípio constitucional da isonomia que se materializa na carta magna e em todo ordenamento jurídico pátrio, exigindo-se que as normas não sejam criadas, em regra, prevendo tratamento diverso entre as pessoas.

Ressalte-se que o princípio da isonomia recai sobre o âmbito público e também sobre o domínio privado, haja vista que a igualdade é fundamento de observância obrigatória em todo o sistema jurídico, manifestando-se como legítimo direito subjetivo acionável perante particulares, acime de tudo por conta da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, cada vez mais in voga.

Importante trazer a lume que há duas espécies de igualdade: a) a igualdade na lei; b) igualdade perante a lei. A doutrina classifica desta forma, ensinando que a igualdade na lei guarda relação com o legislador com o processo de confecção da norma jurídica, que não pode ser eivado por qualquer discriminação. Por outro lado, a igualdade perante a lei é assinalada aos demais órgãos estatais quando da aplicação deste texto legal, não podendo interpretá-la ou subordiná-la a parâmetros discriminatórios, sendo que qualquer inobservância de uma dessas igualdes acarretará, inexoravelmente, inconstitucionalidade (da lei ou do ato).

Todavia, há uma imensa dificuldade na aferição da isonomia entre os homens (e mulheres) já que ninguém é absolutamente igual, sendo todos iguais e desiguais concomitantemente: iguais em sua essência (natureza), porém desiguais em circunstâncias de vida, psicologicamente, economicamente, fisicamente, moralmente e socialmente, o que ocasiona verdadeiros abismos equitativos entre os seres humanos no que tange a idade, inteligência, condição social e instrução.

Eis o grande paradoxo enfrentado pelo Poder Legislativo ao criar as leis e combatido pelo Judiciário ao aplicar as normas ao caso concreto.

2.3 Alteração legal

A Lei 13.104/15 trouxe significativa alteração normativa para o art. 121, do diploma penal pátrio, incluindo o inciso VI em seu bojo, asseverando que o homicídio praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino terá pena de reclusão, de doze a trinta anos.

Pormenoriza, em seu § 2° – A, que se consideram razões de condição de sexo feminino (conforme reza o inciso VI) quando o crime envolve: violência doméstica e familiar, assim como menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Adiciona, também, o § 7°, ao art. 121, do Código Penal, dispondo que a pena do feminicídio é aumentada de um terço até a metade se o crime for praticado: durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; contra pessoa menor de catorze anos, maior de sessenta anos ou com deficiência ou na presença de descendente ou de ascendente da vítima.

Outrossim, insta ressaltar que o feminicídio está inserto como condição qualificadora do crime de homicídio, o que eleva tal tipo penal á condição de crime hediondo, segundo dicção do art. 1°,  I, da Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), o que impede a concessão de graça, indulto, anistia ou fiança ao criminoso, bem como assenta que a progressão de regime do transgressor desta norma dar-se-á após o cumprimento de dois quintos da pena, se o apenado for primário, e de três quintos, se reincidente, ou seja, trata-se de tipo penal incriminador deveras gravoso.

2.4 Contradição, avanço ou retrocesso?

Agora, voltando-nos para o tema sub examine, é de se questionar se a criminalização do feminicídio vem a ser de fato outra conquista ao sexo feminino, haja vista que tal institucionalização aparentemente tem um certo cunho protecionista. Ora, criar um tipo penal exclusivo como este soa como um abrigo ou um agasalho do direito penal a uma classe de pessoas (mulheres) que precisariam de um maior resguardo jurídico devido à sua condição. Indaga-se: por que hão de querer as mulheres uma maior proteção por parte do direito penal, se já não mais estão em posição desfavorável em relação ao homem?

Em contradição ao (avanço) ocorrido em 2009, com o advento da Lei 12.015/09, que alterou substancialmente a tipificação do estupro no estatuo repressor, substituindo o termo “mulher” por “alguém”, no art. 213 do CP o legislador ordinário agora entrega à sociedade o feminicídio, homicídio que protege exclusivamente a mulher pela simples razão do seu gênero. Ou seja, ao invés de dirimir os privilégios e diferenças legais (primando pela igualdade, como fez com o estupro), ele cria ainda maiores diferenças (pondo em relevo as desigualdades).

Outro exemplo normativo, importante à questão em testilha, foi a criação da Lei Maria da Penha, em 2006, que, não obstante guardar estreita relação com a proteção da violência doméstica exclusivamente à mulher, é aplicada (apesar da divergência), com espeque no princípio da razoabilidade (e também da isonomia) em diversos atos em que homens são vitimas de mulheres ou de filhos, por exemplo, respeitando o mandamento constitucional da igualdade, utilizando-a, inclusive, para casos de relações homo afetivas entre homens ou entre mulheres.

É certo que, conforma exposição de motivos da CPI criadora do feminicídio, atualmente o Brasil encontra-se na sétima posição mundial em quantidade de assassinatos de mulheres, contudo, não foi considerado que segundo o IBGE, o número de homicídio no país é dez vezes maior contra homens do que contra mulheres.

Se homem e mulher são perfeitamente iguais em direitos e deveres, sobretudo no seio familiar, por que criar um tipo penal para beneficiar apenas as vítimas mulheres? E nos casos em que as vítimas sejam homens? Não haverá (ou não há) homicídios em desfavor de homens por condição de seu gênero, no âmbito familiar ou por menosprezo à sua condição? Por que deve um feminicida ser incurso em um crime hediondo, de homicídio qualificado, enquanto um eventual “androcida” (aquele que ceifar a vida de um homem em razão de seu sexo) responder por homicídio simples? São as dúvidas que nos ocorrem aos analisar a nova qualificadora do art. 121 do CP e suas implicações.

  1. Conclusão  

Dessarte, após analisados os aspectos supra acerca do feminicídio e do princípio constitucional da isonomia, aparentemente, em nosso sentir, denota-se que houve uma violação ao postulado constitucional da igualdade e, diante disso, houve um consequente retrocesso na tênue linha da isonomia entre homens e mulheres.

Talvez seria melhor o legislador ter criado, então, uma qualificadora “geral” para os sexos acerca dos assassinatos ocorrido nas relações familiares ou por menosprezo à condição de “gênero”, em detrimento do texto original que resguarda apenas a mulher.

Não nos cabe aqui tecer conjecturas sobre o futuro, pois não se podem prever as mudanças que ocorrerão no amanhã, mas é certo que se o legislador continuar nessa toada, certamente, em pouco tempo, teremos o “homocídio”, “negrocídio”, “pobrecídio” e etc., acarretando a desregrada criação de questões que, assim como o feminicídio, a melhor modo, já poderiam ser abarcadas pela qualificadora do motivo torpe, já consagrado dispositivo do art. 121, § 2°, II, do codex penal – afinal, não há como negar a banalidade de crimes como estes.

É fato que a lei foi sancionada, promulgada, publicada e está em vigor, restando aos cidadãos )inclusive as mulheres que desejam a plena igualdade) aguardar as decisões judiciais que virão ou que a questão seja levada ao Supremo Tribunal Federal, para que talvez este entendimento de violação ao princípio constitucional encontre ressonância na corte suprema e ocorram mudanças ao menos na interpretação do feminicídio.

Autor: Leonardo Alves de Oliveira

Referências

ARISTÓTELES. A política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 2. Ed. São Paulo: Marins Fontes, 1998 (Clássicos).

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547. Acesso em: 27 de maio de 2006.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 3.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Constituição brasileira e modelo de Estado: hibridismo ideológico e condicionantes históricas. Caderno de Direito Constitucional e Ciência Política. Vol. 17. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma. Tradução de Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975.

 

 

 

 

 

 

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